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23.8.10

Sócrates: o problema para Nietzsche
artigo publicado na revista filosofia nº47, matéria de capa, pp. 42-49, junho de 2010
Ilustração de trechos da Ilíada, poema épico grego atribuído a Homero. Segundo Nietzsche, Sócrates negou toda a cultura precedente a ele, o que inclui a obra de Homero e de outros autores que serviram de base para o florescimento da tragédia

"Há muitas coisas que quero, de uma vez por todas, não saber. A sensatez estabelece limites mesmo ao conhecimento"
NIETZSCHE

Qual o problema de Sócrates em Nietzsche? A partir de três livros, O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, Aurora e Crepúsculo dos Ídolos, é possível analisar, cronológica e conceitualmente, as críticas a Sócrates (469-399 a.C.), sempre constantes na Filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Entre elas, destaca-se a investida contra o conceito de racionalidade introduzido por Sócrates e difundido por Platão na cultura ocidental. 

Nietzsche já havia trabalhado com textos preparatórios, em especial Sócrates e a Tragédia, que mencionava esse tipo de crítica a Sócrates. No entanto, vamos nos concentrar na obra O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, de 1871, em que suas preocupações canalizam na Filosofia da Arte, precisamente nos estudos da tragédia grega; sob fortes influências da metafísica da vontade de Schopenhauer e do projeto artístico-cultural de Richard Wagner. No início da obra, o filósofo menciona elementos da relação do homem grego homérico com a ordem divina. Relata que os gregos antigos tiveram que criar deuses devido a mais profunda das necessidades: sobreviver. Processo que pode ser representado a partir da ordem divina primitiva, titânica, a qual do pavor desenvolveu-se, em lenta transição, ao impulso apolíneo à beleza e à ordem divina olímpica pautada na alegria.
Foto: Arquivo Ciência & Vida
"De que outro modo aquele povo, tão excitável em sua sensibilidade, tão impetuoso em seus desejos, tão apto unicamente para o sofrimento, teria podido suportar a existência, se esta, banhada em uma glória superior, não lhe tivesse sido mostrada em seus deuses?" (§ 3). O elemento destaque é o tipo de homem homérico que o filósofo descreve: o homem que é campo de batalha do insecável combate entre peculiaridades racionais e desejantes.

IDEAL DE HOMEM
Esse combate entre razão e paixão faz do homem homérico o tipo ideal de homem para Nietzsche. E este tipo ideal grego só suportava a existência visceral porque ela era corroborada na vida dos deuses. Disso, logo outro elemento se destaca na análise de Nietzsche: a incondicional opção pela expansão da vida. Em suma, restava ao homem homérico, segundo a perspectiva nietzschiana, somente o anseio pela existência. Resultou deste anseio o ato artístico: a criação dos deuses e das histórias fantásticas. O ato artístico, portanto, correspondia para o grego homérico à expansão da vida.
É no embate entre forças representadas por Dionísio e por Apolo que a tragédia grega mostra sua importância. Grosso modo, o elemento representado por Dionísio é a paixão, princípio desejante da espécie humana: a vontade; aproxima as alegrias das sensações. Enquanto Apolo é a representação da racionalidade: da beleza; aproxima os homens da sabedoria.
Em síntese, a tese no início da obra é a constatação da relação entre o apolíneo e o dionisíaco. Elementos que após intenso período de lutas e de reconciliações propiciaram o surgimento da Arte trágica. Porém, Nietzsche não constata somente o nascimento da tragédia, mas revela também sua morte. O filósofo julga responsável pela certidão de óbito da arte trágica o escritor Eurípides, que instaurou no pensamento grego ateniense o socratismo estético.
Para Nietzsche, a tragédia morreu assassinada pelo pensamento socrático através da inserção na cultura grega antiga do culto à razão. Ele constata que Sócrates, que jocosamente confessava nada saber, reconheceu em suas perambulações por Atenas a visitar estadistas, oradores, poetas e artistas, que estas celebridades não tinham entendimento correto e seguro nem mesmo sobre suas profissões, exerciam-nas por instinto. 

Foto: Arquivo Ciência & Vida

O que a crítica a Sócrates revela nesse aspecto é a incompatibilidade entre dois modos de compreensão da realidade. De um, no trágico, há a compreensão de forças externas e contrárias ao homem; de outro, no socrático, há a supervalorização da interioridade da razão que domina e imputa ordens às forças externas - e controla tudo o que lhe é contrário, principalmente os instintos.
"A partir desse único ponto acreditava Sócrates ter de corrigir a existência: ele sozinho, trazendo no rosto a expressão do desdém e da altivez, faz da sua aparição, como precursor de uma Cultura, Arte e Moral de espécie totalmente outra (...)" (§ 13). Com isto, Sócrates nega toda cultura anterior a si, a saber: Homero, Píndaro e Ésquilo, Fídias, Péricles, Pítia e Dionísio. Cultura tal que na análise nietzschiana foi onde floresceu a tragédia.

Sócrates substituiu o instinto (elemento criativo do grego arcaico) pelo daimon (elemento racional da filosofia socrática)

Nietzsche parte daí para a análise do daimon socrático. Este, toda vez que o pensamento de Sócrates cambaleava, era apoio de segurança em forma de voz divina que o exortava e não o deixava perder a lucidez racional em oposição aos desejos. Segundo o filósofo alemão, a sabedoria instintiva foi substituída em Sócrates pelo daimon. Isso significa que, para os gregos primitivos, o instinto era força criadora-afirmativa, enquanto a consciência era força crítica. Ao contrário, para Sócrates, o daimon - o instinto - era elemento crítico e a consciência era elemento criativo. Então, em Sócrates, houve uma inversão que substituiu o instinto (elemento criativo do grego arcaico segundo Nietzsche) pelo daimon (elemento racional da filosofia socrática).
Outra característica é ainda observada no início de O Nascimento da Tragédia...: a suposta vontade socrática pela morte justa e a lucidez por meio da qual Sócrates se encaminhou a ela no período entre sua condenação e a ingestão da cicuta. Afinal, se a sentença pronunciada contra ele foi a morte, e não o exílio, então o veredicto parece ter sido provocado pelo próprio Sócrates. Depois da morte, ele "tornou-se o novo ideal, nunca antes contemplado, da nobre juventude grega: e o típico jovem heleno, Platão, foi o primeiro a lançar-se, com toda a ardente devoção de sua alma arrebatada, aos pés dessa imagem" (§ 14).

Sócrates não é o único alvo das críticas de Nietzsche. O filósofo tem comentários negativos a respeito de Xenofonte, Platão, Aristóteles, Martinho Lutero, Kant, Schopenhauer e Wagner, músico que chegou a admirar. Critica quase toda a cultura ocidental, a Metafísica, o Iluminismo, as principais teorias do Estado, e o cristianismo

"Com ajuda da moralidade do costume e da camisa-de-força social, o homem realmente se tornou confiável" NIETZSCHE
O exemplo da vida de Sócrates mostra o fim da tragédia pelo domínio da razão sobre os instintos. Ao instituir um estatuto de excelência da razão sobre os instintos, o filósofo grego aspirou julgar o valor da vida, com isto, criou a oposição entre conhecimento sobre a aparência e conhecimento sobre a essência. O instinto de Sócrates, o daimon, orientava-o a repulsa do aparente, na medida em que a consciência, a razão de fato, orientava-o a conhecer a essência: a verdade. A tal verdade para Sócrates não se encontra, portanto, na vida dos sentidos, mas na vida contemplativa, por meio da interiorização.
Se, como entende Nietzsche, Sócrates foi conivente com o veredicto de sua morte, e, como relata Platão na Apologia, ele não quis tentar uma fuga enquanto esperava a cicuta, então caminhou conscientemente à sua morte "para começar um novo dia"; uma outra fase da vida: a da liberdade da alma para encontro com a verdade. Com isto, surgiu na Grécia Antiga, ao assassinar o tipo trágico, o novo tipo de homem: o socrático - sistematizado e difundido na obra de Platão.

AURORA
Ao romper com as influências de Schopenhauer e de Wagner, em 1878, com o livro Humano, demasiado humano, Nietzsche ingressa na fase madura de sua produção intelectual. Porém, é em 1881, com a publicação de Aurora, que suas investigações tomam os estudos da moral ocidental como objeto central de análise. A obra teve o objetivo de lançar crítica à moral ocidental dominante através da problematização na confiança da moral de matriz platônico- cristã.
Quanto a Sócrates, Nietzsche introduziu novo elemento à sua crítica: a correspondência entre a obra de Platão e a moral dominante europeia, ou seja, a relação entre a filosofia socrático- platônica e o cristianismo. No parágrafo 429 de Aurora, Nietzsche pergunta a seu leitor por que se teme e odeia-se tanto um possível retorno à barbárie. "Porque ela faria os homens mais infelizes do que são? Ai, não! Os bárbaros de todos os tempos tinham mais felicidade: não nos iludamos!". O fato é que, para o homem moderno, o impulso ao conhecimento é forte demais para que haja felicidade sem ilusão.

Escultura de Apolo. O homem grego cria os deuses e neles se espelha. De Apolo veio a necessidade de beleza, de uma ordem divina olímpica pautada na razão
O retorno à barbárie ao qual Nietzsche se refere é precisamente o retorno ao tipo de homem antigo. Àquele que o filósofo em O Nascimento da Tragédia... descreve como homem trágico: o homem impetuoso. Diferente deste, o homem moderno inclina sua felicidade ao conhecimento de uma forte ilusão, a qual é o conhecimento do mundo inteligível cristão. A vida celeste além-existência-terrena. "O conhecimento, em nós, se transmudou em paixão, que não se intimida diante de nenhum sacrifício e no fundo nada teme (...)" (§ 429). A paixão do homem contemporâneo, para Nietzsche, tem relação estreita com a ideia de morte; ora, é ao morrer que o cristão entra no Reino Celeste, onde a vida é melhor. "Sim, odiamos a barbárie - preferimos todos ver sucumbir a humanidade a ver regredir o conhecimento!" (§ 429).

O fato é que, para o homem moderno, o impulso ao conhecimento é forte demais para que haja felicidade sem ilusão
Todavia, qual é o tema conceitual correspondente ao socratismo e à moral cristã? Em uma só expressão: a ética. Para Nietzsche, Sócrates descobriu na eticidade as formas de causa e efeito, de fundamento e de consequência. Em suma, descobriu a lógica da eticidade, "e nós, homens modernos, estamos tão habituados à necessidade da lógica e educados para ela que a temos sobre a língua como gosto normal (...)" (§ 544).
Essa eticidade pretende fazer acreditar que a alma é uma espécie de ser intuitivo dotado de sentido interno ou intuição intelectual, "com um gênio na cabeça e um diabo no corpo" e com a vantagem de ser divina, por isso incompreensível. Proclama Nietzsche "(...) isso faz também Filosofia! Temo que notem um dia que se equivocarem - o que querem é Religião!" (§ 544).
O que faz o cristianismo é esforçarse em construir um ideal inteligível, que está voltado para dentro de cada homem. A direção de tal ideal é a redenção: a vida extramundo terreno. A lógica para a ação é aquela estabelecida para angariar o ingresso para o Reino dos Céus. Ora, tal como a eticidade socrática, a moral cristã nega o mundo sensorial, para, a partir de um mundo inteligível, poder afirmar a felicidade da alma humana. Esta felicidade, ou melhor, essa ética é orientada por uma dimensão teleológica. A finalidade da alma, para a noção socrático-platônica, é libertar-se da matéria (do conhecimento através dos sentidos), para a noção da moral cristã é libertar-se do pecado (da fruição dos instintos).

"Temos a Arte para não morrer da verdade"
NIETZSCHE

Foto: Shutterstock
Ruínas de Atenas, na Grécia. Sócrates viveu em uma Atenas já de valores decadentes e acreditava que a cidade precisava de sua Filosofia para recuperar-se. Para Nietzsche, ele apenas agravou a decadência com uma racionalidade moral
Em ambas as noções não há afirmação de um tipo de homem que comporte a batalha entre princípios racionais e desejante. Há, contudo, repulsa aos desejos humanos em favor da racionalidade, em favor da lógica de negação do mundo sensorial; em última instância, para Nietzsche: da negação da vida.

CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS
Em 1888, Nietzsche publica Crepúsculo dos Ídolos. Trata aí de fazer uma releitura de todos os temas recorrentes em sua obra. Logo no parágrafo 2 retoma a crítica a Sócrates. Para fazê-la, destaca a prática da Filosofia socráticoplatônica de valorar a vida. "Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintomas, só como sintomas entram em consideração - em si tais juízos são estupidez".
Nesse sentido, para a perspectiva nietzschiana, a vida não pode ser julgada por um vivente, afinal, esta é a parte interessada e objeto mesmo em questão, ou seja, em tal julgamento é o próprio juiz que se julga. Disto, um filósofo que problematiza o valor da vida naufraga a própria sabedoria.
Contudo, aqui o foco da crítica a Sócrates se concentra nas observações em torno do método socrático. Nietzsche se refere ao método dialético ou ao diálogo socrático: a ironia (o jogo de perguntas e objeções que levam o interlocutor à contradição lógico-conceitual) e a maiêutica (o parto da verdade, que, antes, era totalmente desconhecida pelo interlocutor).
Questiona-se no parágrafo 7: "é a ironia de Sócrates uma expressão de revolta? De ressentimento plebeu? (...) O dialético despotencia o intelecto de seu adversário. - Como? É a dialética apenas uma forma de vingança, em Sócrates?". Para Nietzsche, o dialético pode se tornar facilmente um tirano, posto que deixa nu aqueles que vence. "O dialético deixa para seu adversário o ônus de provar que não é um idiota (...)" (§ 7). Para descrever o suposto ressentimento e a suposta vingança do plebeu Sócrates, Nietzsche busca no tempo histórico do grego as causas de tanto.

Sócrates foi um grande mal-entendido tal como foi também a fé cristã, afinal, "ter de combater os instintos [é] a fórmula para a décadence"

Lembra que a Atenas de Sócrates estava em decadência, e que ele, para fazer guerra contra tal decadência, entendeu que a polis necessitava de sua Filosofia. De seu remédio, de sua cura. Nesta Atenas decadente, instintos de anarquia estavam por todos os lados, por toda parte se estava a poucos passos do excesso. E Sócrates, neste contexto, apenas alterou a decadência da cidade, chamou-a para si, mas não a eliminou. "Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, aquele que mais saltava aos olhos, daquilo que naquele tempo começava a se tornar a indigência geral: que ninguém mais era senhor sobre si, que os instintos se voltavam uns contra os outros" (§ 9).
Para Nietzsche, Sócrates queria ser um médico, uma espécie de salvador. Ora, o grego foi um décadent porque acreditava na racionalidade a todo preço como remédio do qual era portador. Entretanto, "a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, oferecendo resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença - e de modo nenhum um caminho de retorno à 'virtude' (...) à felicidade... (...)" (§ 11).
Conclui Nietzsche que Sócrates foi um grande mal-entendido tal como foi também a fé cristã, afinal "ter de combater os instintos [é] a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto" (§ 11).
De fato, as críticas a Sócrates compõem um tema recorrente na obra de Nietzsche. Embora o projeto do filósofo alemão tenha tomado outro objeto de análise a partir da década de 1880 - das preocupações com a Arte ele passou a se concentrar no problema da confiança na moral - o problema de Sócrates permaneceu o mesmo: a supressão dos instintos humanos pela razão.
 
REFERÊNCIAS:
AZEREDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UNIJUI, 2000.MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
_______. Obras incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun.
Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores).
_______. O nascimento da tragédia no espírito da música. São Paulo:
Abril, 1983.

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