busca:

23.11.10

Virtual, ciberespaço e cibercultura
Segundo Pierre Lévy

Artigo publicado na revista filosofia nº52, encarte do professor, pp. 9-16.



por Victor Costa

VIRTUAL
Segundo Pierre Lévy, a palavra virtual tem ao menos três sentidos. Um comum associado ao uso corrente da palavra, para designar irrealidade – enquanto que neste sentido real pressupõe efetivação material, presença tangível. Outro sentido mais técnico, associado à informática. Por fim, um sentido estritamente filosófico. O virtual é uma categoria de análise filosófica, desde muito.
“Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato[1]. Desde a Escolástica, sobretudo a partir das contribuições de São Tomás de Aquino no campo da Teoria do Conhecimento, o virtual existe em potência e não em ato. É sabido que os conceitos de potência e de ato, e suas relações, são tomados da Metafísica de Aristóteles. Não entremos aqui no mérito de retomar a explicação destes conceitos e os seus problemas correlatos, mas somente como deles surge a ideia de virtual. Segundo o referencial escolástico, “o virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente”[2]. Isto significa que em sentido filosófico o virtual não se opõe ao real. Premissa fundamental.
A fim de compreender as relações entre virtual e real, seguindo a indicação de Lévy, é sensato retomar a distinção conceitual entre possível e virtual, feita por Gilles Deleuze em Différence et répétition. O possível é uma dimensão da realidade que espera por uma atualização – agente(s) ou circunstância(s) – que o torne real, de presença tangível. Ocorre que segundo argumento de Deleuze o possível já está todo constituído, mas permanece no limbo. Este possível se realizará sem que nada mude em sua natureza. O possível é exatamente como o real: só lhe falta a existência empírica. Assim, a realização do possível não é uma criação no sentido estrito do termo, pois criação implica produção inovadora de uma ideia ou de uma forma, de uma substancialidade. A diferença, portanto, entre possível e virtual, indica Deleuze, é puramente lógica[3]. É este também o estatuto – lógico – da noção escolástica entre potência e ato.
Pois bem: contrariamente ao possível, já constituído, o virtual é como um “complexo problemático”[4]: um nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, acontecimento, objeto ou entidade qualquer. E que demanda um processo de resolução, de atualização. Disto, o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. O complexo problemático, por exemplo, de uma semente faz brotar uma árvore. Explica Lévy: “a semente [é] esse problema (...) isso significa que ela conhece exatamente a forma da árvore que expandirá sua folhagem (...). A partir das coerções que lhe são próprias, deverá inventá-la, produzi-la com os agentes e com as circunstâncias que encontrar”[5].
 Portanto, o virtual não se opõe ao real. Ao contrário, são dimensões de uma mesma realidade. A afirmação é complexa. A partir dela vale então dizer que uma entidade empírica é constituída também pelas suas qualidades virtuais: as possibilidades inerentes a si, que a animam, movem-na, são parte constitutiva de sua determinação. É por este ponto de vista que a ideia de atualização se opõe ao conceito de virtual. Precisamente porque a atualização significa criação, invenção de uma nova forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades[6].
“Por exemplo, se a execução de uma programa informático, puramente lógica, tem a ver com o par possível/real, a interação entre humanos e sistemas informáticos tem a ver com a dialética do virtual e do atual”[7]. A criação de um programa, de um software, dá resolução a um problema. O programa como interface do real ao virtual. Ocorre que o programa em situação de utilização, demanda, ele também, a atualização do real. Em um grupo de trabalho: desqualifica certas competências, desencadeia conflitos, desbloqueia situações, enfim, instaura nova dinâmica de colaboração. “O programa contém uma virtualidade de mudança que o grupo – movido ele também por uma configuração dinâmica de tropismos e coerções – atualiza de maneira mais ou menos criativa. O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-lhe”.[8]

Virtualização:
As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre heterogênese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade. Convém evidentemente não confundir a heterogênese com seu contrário próximo e ameaçador, sua pior inimiga, a alienação, que eu caracterizaria como reitificação, redução à coisa, ao “real”.

Pierre Lévy, O que é Virtual ?

Compreende-se, logo, a diferença entre às noções de realização e de atualização. Aquela é ocorrência de um estado já pré-definido, o possível; esta é invenção de uma solução exigida por um complexo problemático, o virtual. Pierre Lévy, segundo este ponto de vista, defende não mais o virtual como maneira de ser, mas como dinâmica. Como movimento. Movimento de virtualização, como inverso ao movimento da atualização. “Consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma ‘elevação à potencia’ da entidade considerada”[9].
A virtualização é, segundo a filosofia de Lévy, um movimento de mutação de identidade, por meio do deslocamento do centro de gravidade ontológica de determinada entidade. Tal entidade, em vez de se definir principalmente por sua atualidade (sua capacidade de lançar-se como solução à dialética do virtual e do atual), encontra a própria substancialidade no campo problemático das possibilidades. Ao exemplo, dado por Lévy:
“Tomemos o caso, muito contemporâneo, da ‘virtualização’ de uma empresa. A organização clássica reúne seus empregados no mesmo prédio ou num conjunto de departamentos. (...) Uma empresa virtual, em troca, serve-se principalmente do teletrabalho; tende a substituir a presença física se seus empregados nos mesmos locais de participação numa rede de comunicação eletrônica e pelo uso de recursos e programas que favorecem a cooperação”[10].
O campo problemático ao qual a entidade (a empresa “virtualizada”) encontra sua substancialidade é, por excelência, filosófico: a virtualização da empresa consiste em fazer das categorias de tempo e de espaço problemas sempre a serrem repensados – para o qual não há solução estável. O centro gravitacional da organização virtualizada não é mais um conjunto de departamentos, mas um processo de coordenadas espaço-temporais de acordo com as exigências de cada um de seus membros. A virtualização coloca em cheque as categorias clássicas de tempo e espaço – tangentes, mensuráveis. Eis o grande problema do virtual na informática: deslocar as identidades clássicas do pensamento filosófico.
Os limites espaço-temporais só existem no real. A virtualização subverte a “identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos”[11]. Os lugares e tempos se misturam. No virtual, recorta-se o espaço-tempo clássico e seus lugares-comuns: realistas. “A virtualização submete a narrativa clássica a uma prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar (graças às interações em tempo real por redes eletrônicas, às transmissões ao vivo, aos sistemas de telepresença), continuidade de ação apesar de uma duração descontínua [!] (como na comunicação por secretária eletrônica ou por correio eletrônico). [No virtual,] a sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a unidade de tempo”[12].

CIBERESPAÇO
Grosseiramente ciberespaço é território da rede digital. É o “território” por meio do qual se dá um novo modo de comunicação que surge da interação global de computadores. De modo mais pontual ciberespaço especifica não somente o palco no qual informações digitais interagem, mas também o ambiente onde seres humanos interatuam por meio de interfaces digitais.
A palavra ciberespaço apareceu em 1984 no livro Neuromante, romance de ficção científica escrito por William Gibson. No livro, o termo designa o campo das redes digitais como local de batalha entre multinacionais; palco de conflitos mundiais, o ciberespaço revela fortalezas de informações secretas protegidas e ilhas de dados que se metamorfoseiam. Alguns heróis se virtualizam e são capazes de entrar “fisicamente” no espaço dos dados, o ciberespaço. Desde a ocorrência no livro de Gibson, a palavra tem tido profusão nas correntes cientificas, artísticas, políticas e filosóficas. 

Breve histórico das redes digitais:
1945: Surgem os primeiros computadores na Inglaterra e nos Estados Unidos. Grandes máquinas programáveis que serviam para cálculos científicos.

1960: Criou-se um método para transmitir dados através de uma rede virtual. A técnica foi inventada independentemente por dois cientistas da computação: Paul Baran (EUA) e Donald Davies (Inglaterra). 

1970: Talvez a virada fundamental do desenvolvimento da informática: desenvolvimento e comercialização do microprocessador. 

1980: Primeiros passos no horizonte multimídia. A informática perdeu seu status industrial e começou a se fundir com as telecomunicações. 

1990: Surgem novas tecnologias digitais como infraestrutura do ciberespaço. Estabelece-se um mercado da informação e do conhecimento.

2000: Surge a possibilidade de criação e replicação de conteúdos informativos e de entretenimento no ciberespaço. Surgem a cibercultura e os coletivos inteligentes.

Pierre Lévy define ciberespaço como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores”[13]. A ideia central desta definição advém da prática da codificação digital. É a codificação digital que garante o caráter plástico, fluido, interativo e, claro, virtual da informação. A informação é a marca distintiva do ciberespaço[14], o Bit[15], sua célula: elemento cabal da informação.
Segundo Lévy “a perspectiva da digitalização geral das informações provavelmente tornará o ciberespaço o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade a partir do início do próximo século”[16]. O filósofo escreveu isto em 1997. Hoje, pouco mais de 10 anos depois, podemos com segurança concordar com a afirmação.

CIBERCULTURA
O neologismo cibercultura designa o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento do ciberespaço. A interconexão que ocorre no ciberespaço tem imensas repercussões antropológicas que transformam efetivamente as condições de vida em sociedade. Cibercultura é um movimento social, embora habitualmente considerada como um elemento “técnico”. É o sistema de relações humanas ligadas a dados digitais, e, sobretudo, um modo sem precedentes na história humana de relacionamento com o conhecimento e seu desenvolvimento. É este o recorte temático da cibercultura, o das possibilidades do conhecimento, que nos interessa aqui.
Podemos entender a cibercultura de duas maneiras pelas quais se associa ao virtual. Direta e indiretamente, segundo Lévy. Diretamente: a codificação digital das se dá pelo processo de virtualização. Os códigos binários, os Bits, estão inscritos em algum suporte físico, mas, uma vez inscritos no ciberespaço, independem de coordenadas espaço-temporais determinadas. Então, “no centro das redes digitais, a informação certamente se encontra fisicamente situada em algum lugar, em determinado suporte, mas ela também está virtualmente presente em cada ponto da rede onde seja pedida[17]. A informação digital (traduzida para 0 e 1) é virtual na medida que inacessível em si ao ser humano. “Só podemos tomar conhecimento direto de sua atualização por meio de alguma forma de exibição”[18], uma interface que tornará textos legíveis, imagens e vídeos visíveis, sons audíveis; eis a dialética do virtual e atual durante a imersão do mundo virtual ao atualizar seu potencial em um contexto particular de uso do ciberespaço.
Contudo, o desenvolvimento das redes digitais favorece outros movimentos que não o da virtualização da informação. O ciberespaço, nas palavras de Lévy, encoraja um estilo de relacionamento quase independente de lugares geográficos e de coincidência dos tempos. De fato. As particularidades técnicas do ciberespaço permitem que os membros de um grupo de humanos se coordenem, cooperem, alimentem e consultem uma memória comum, e isto quase em tempo real, apesar da difusa dispersão geográfica e da diferença nos fusos-horários. Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais ele se torna universal, e menos o universo da informação digitalizada se torna totalizável. “O universal da cibercultura não possui nem centro nem linha diretriz”[19]. O ciberespaço é um universal sem totalidade (dada sua característica de ser atemporal e assincrônico) – isto constitui a essência da cibercultura: o conceito de universal sem totalidade[20].
Pierre Lévy em evento promovido pela cpfl cultura, 2008



As principais categorias associadas ao conhecimento na cibercultura são: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência comum. Vejamos.
O imperativo categórico da cibercultura é a comunicação universal; a conexão é um bem em si. A cibercultura aponta, segundo a perspectiva de Lévy, para uma civilização da telepresença generalizada, onde a física da comunicação permite à humanidade um contínuo movimento de troca de conhecimento e funcionalidades sem fronteiras; os seres humanos e as máquinas no mesmo universo da comunicação interativa. Cada computador do planeta, cada aparelho de comunicação, e de diversas utilidades, com um endereço no ciberespaço – na Internet. Eis a interconexão.
O desenvolvimento das comunidades virtuais é um prolongamento da interconexão, afinal, advém dela. Uma comunidade virtual é composta por humanos que têm afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos: que se agrupam via um processo de cooperação ou de troca – que independem das proximidades geográficas e das filiações institucionais. O mote das comunidades virtuais é explorar novas formas de opinião pública. Fator caro à contemporaneidade. A opinião pública está intimamente ligada à democracia. As comunidades virtuais problematizam, assim, a própria noção de “público”, porque oferecem um campo de prática mais aberto, mais participativo, mais distribuído que aquele das mídias clássicas. “A cibercultura é a expressão (...) da construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre relações de poder político, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns (...) sobre o compartilhamento do saber (...)”[21]

Fundamentos científicos das redes digitais:
Em 1938, o cientista Alec Reeves criou uma forma de ler digitalmente os sinais analógicos. É o precursor das redes digitais. Criou uma linguagem chamada Código de Modulação de Pulso, que utiliza a lógica do famoso código binário (0-1). 

Arthur Clarke foi cientista e exímio escritor. Foi um conto seu que inspirou o filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Sua principal contribuição foi a criação do conceito de satélite geostacionário. Em 1945, Clarke apresentou o conceito em artigo publicado em uma revista já chamada Wireless World, propôs aí uma cobertura “extra terrestrial” para a radiodifusão mundial. Suas ideias foram imprescindíveis para o desenvolvimento das telecomunicações, e inspiraram a noção de rede em “tempo real”.

A terceira categoria constituinte da cibercultura é a inteligência coletiva. Para Pierre Lévy, esta categoria é o telos da cibercultura. Para ele, a inteligência coletiva é o modo de realização epistemológica da humanidade – que a rede digital felizmente favorece, sem que saibamos a priori em que direção irá os resultados da sinergia intelectual, posto que a inteligência coletiva constitua mais um campo de problemas que de soluções. O próprio Lévy nos apresenta tal campo problemático:
“Todos reconhecem que o melhor uso que podemos fazer do ciberespaço é colocar em sinergia os saberes, as imaginações (...) daqueles que estão conectados a ele. Mas em que perspectiva? De acordo com qual modelo? Trata-se de construir colméias ou formigueiros humanos? Desejamos que cada rede dê à luz um ‘grande animal’ coletivo? (...) Cada um de nós se torna uma espécie de neurônio de um megacérebro planetário ou então desejamos constituir uma multiplicidade de comunidades virtuais nas quais cérebros nômades se associam para produzir e compartilhar sentido?”[22].
Movimento social e cultural, a cibercultura apresenta aos conectados ao ciberespaço uma forma de comunicação interativa, comunitária, transversal, e dá vazão a dois valores centrais na manutenção das relações humanas: a autonomia e a abertura para alteridade. Contudo, como aponta Lévy, as respostas aos problemas em torno da inteligência coletiva não estão dadas, é preciso pensar um projeto civilizatório centrado sobre os novos coletivos inteligentes. Tal necessidade é um dos desafios para o pensamento filosófico contemporâneo.

Bibliografia:
Gilles, D. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968.
Lévy, P. Cibercultura. 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2008.
_______. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 2009.
Savazoni, R; Cohn, S (orgs). Cultura digital.br. Rio de Janeiro: Beco d Azougue, 2009.



[1] Lévy, P. Cibercultura. 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 47.
[2] _______. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 15.
[3] Gilles, D. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, pp.169-176.
[4] Cf. O que é o virtual? p. 16.
[5] Ibidem.
[6] Cf. Ibidem.
[7] Idibem.
[8] Idem, p. 17.
[9] Idibem.
[10] Idem, p. 18.
[11] Idem, p. 25.
[12] Idem, p. 21.
[13] Cibercultura, p. 92.
[14] Cf. Idem, p. 93
[15] Abreviação de BInary DigiT (Dígito Binário). Elemento técnico que permite a linguagem digital, a partir dos valores de identidade 0 e 1.
[16] Cibercultura, p. 93.
[17] Idem, p. 48.
[18] Ibidem.
[19] Idem, p. 111.
[20] Cf. Ibidem.
[21] Idem, p. 130.
[22] Idem, p. 131.


Nenhum comentário:

Postar um comentário