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21.8.10

Falta-nos catarse

artigo publicado na página opinião em 30/07/2010 i
 

O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio. A frase é de Charles Bukowski, abertura de um texto sobre o circo dos horrores humanos, em que ele se queixa desta espécie insípida e tediosa, cujo ato glorioso parece ser sempre a violência. Mas não há saída, é o humano. E os supostamente civilizados têm que conviver com isto. Se quiserem que as luzes continuem acesas, se quiserem consertar a TV, ou quiserem dar descarga, têm que continuar a se relacionar com a própria espécie. Precisamos uns dos outros. O horror é quase uma gentileza.

Como somos bons nisto, na violência. Desde defenestrar filhos a concretar ex-amantes. E como gostamos disto, do horror. A audiência dos noticiários policialescos garante-me ambas as afirmações. Mas paira-me a dúvida: por que o horror — em seu espetáculo midiático — nos fascina tanto? Arrisco uma resposta trágica: porque nele reconhecemos o drama humano, demasiado humano. Reconhecemos nós mesmos. Ora, é o reality show policialesco substituto contemporâneo da antiga tragédia grega? Longe disso. Contudo, falta-nos algo das antigas tragédias gregas? Presumo que sim.

Concernente à encenação teatral como ritual político e religioso, atualmente, a tragédia grega não nos diz mais nada. Há um abismo temporal que nos separa daquela prática. Todavia, no tocante ao conhecimento dos limites e deslimites humanos a tragédia grega ainda nos fala de perto. Enquanto assistia à encenação trágica o cidadão reconhecia suas tensões passionais nos atos grotescos dos heróis. Este reconhecimento era útil à sociabilidade. Aristóteles bem teorizou sobre. Latências violentas e penosas eram, através da arte trágica, purificadas e transformadas em deleite estético e intelectivo. A purificação passional através da descarga emocional via o trágico: isto era a catarse.

O fetiche contemporâneo pelo espetáculo midiático do horror revela nossa ânsia catártica. Mas só provoca náuseas. Não há purificação passional alguma via tal fetiche. O ritual catártico deveria ser cívico e educativo, mas hoje se converteu à perversão colérica. Agredir advogados de defesa frente ao Tribunal do Júri, réus à porta de delegacias de polícia, clamar fervorosamente junto ao noticiário por “justiça” não são vieses catárticos. Catarse não vinga, não redime, não condena. Ensina-nos.

Ensina-nos quem somos. Ora potencialmente divinos, ora aquém do mais vil dos animais. Demasiado humanos. Ensina-nos sim que temos necessidades violentas, coléricas. Não nos espantemos com a possibilidade dos horrores humanos. Temos é que expurgá-los da ordem social. Evitar-lhes no âmago de seu florescimento. Purificá-los. A catarse possibilita-nos isto. Possibilita-nos também uma experiência ajuizadora. Ao purgar a animalidade passional humana, o sentimento catártico opera na manutenção da ordem pacífica, tão cara à sociabilidade. Falta-nos catarse.

Se a encenação trágica nos é distante, forçosa, como angariar algum sentimento catártico autêntico? Em meio aos desígnios da massa ensandecida, motivada pelo reality show policialesco? Acho mesmo, leitor, que deveríamos lotar as bibliotecas, os cafés filosóficos, os cineclubes, as óperas, os teatros. Os espetáculos de arte e os pontos de cultura quaisquer que sejam. Deveríamos purificar o horror que nos habita, não lhe dar audiência.

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